Quando saía para trabalhar, os filhos ficavam sós pelas ruas
FOTOS: KID JÚNIOR
Durante 35 dias, a diarista Ana Maria (nome fictício), 36, praticamente morou no Instituto Doutor José Frota (IJF). O motivo? O seu filho mais novo, de apenas 14 anos, foi alvejado com cinco tiros no bairro em que nasceu e se criou: o Pirambu. Era dia de jogo entre Brasil e Alemanha, pela Copa do Mundo de 2014. O alvo, entretanto, era o seu filho do meio, de 17 anos. Ao receber a notícia, foi como se um "filme" passasse pela sua cabeça. Há dois anos, Ana sofreu um forte baque ao perder o filho mais velho, assassinado por disputas pelo tráfico de drogas.
"Criar os filhos na favela não é nada fácil. Como eu tinha que sair para trabalhar, eles ficavam sozinhos, por isso entraram nessa vida. Eu morava em um lugar que, se eles saíssem de casa, o que iriam encontrar? Só aquilo (drogas). Foi muito difícil a situação. Com 15 anos, o meu mais velho se envolveu no mundo do tráfico por conta daquela questão de dinheiro fácil, aquela coisa de os traficantes grandes só usarem os menores, e foi assim que aconteceu. Os mesmos que usavam foram os mesmos que eliminaram ele", conta, durante uma rápida descida ao térreo do Frotão para dar esta entrevista.
Luta
Quando o filho mais velho já estava ameaçado de morte, em uma tentativa quase desesperada de salvá-lo, Ana resolveu abandonar o bairro onde cresceu e criou laços afetivos com a vizinhança, e foi morar na Barra do Ceará. Porém, a história se repetiu. Novamente, o mais velho voltou a se envolver com o tráfico. "Tudo por conta de rivalidade. Eles criam isso, um não passa para o território do outro, pior que é no mesmo bairro. Se passar eles matam mesmo. Inclusive, esse é o motivo de eu estar no hospital com o meu mais novo, que ficou entre a vida e a morte".
Após perder o filho mais velho, Ana resolveu retornar para o Pirambu, onde já conhecia a vizinhança e estava mais adaptada. E, apesar do choque, nunca se rendeu e nem cruzou os braços para a situação que a rodeava. É notória a sua luta para que os outros dois filhos larguem as drogas. "O mais velho se envolvia com a questão do tráfico, mas esses dois que eu fiquei, não. O problema deles era mais rua mesmo. Eles iam para usar drogas, usavam todo tipo, mas eu nunca desisti. Procurei ajuda em tudo quanto é canto", frisa.
Mesmo após ser interrompida por um transeunte que pedia qualquer ajuda financeira, Ana não se intimida e continua a contar a sua história. Impressionado com o relato, o homem permanece ali, em pé, imóvel, ouvindo-a. Não foi o relato do assassinato do filho mais velho e nem a tentativa de homicídio do mais novo que a comoveu. A única hora em que se emocionou foi quando falou da situação de completa penúria do garoto que efetuou os disparos contra o seu caçula, deixando claro a nobreza de espírito e o sentimento de compaixão que carrega.
Compaixão
"Eu não consigo sentir nem raiva do menino que fez isso com o meu filho. Sabe por quê? Porque a situação dele é bem pior do que a do meu menino. A família dele é carente, bem pobre mesmo, a mãe dele pede esmola", disse, com os olhos marejados, sem conseguir conter a emoção.
Ela atribui o que aconteceu com os seus filhos à rivalidade que há no bairro e à disputa para ganhar terreno. "Eles vão lá e atiram em quem quer que seja. Atiram para entrar no tráfico e ganhar território. É assim que funciona na periferia. Crianças de 12, 13, 14 anos. O que atirou no meu filho também tem 14. É uma criança, carente. Não dá nem para ter raiva. Mas tudo isso por conta da droga, da situação toda. Condição para ter armas eles têm? Não. Os grandes colocam nas mãos dos pequenos. As crianças que vão entrando agora nesse mundo do tráfico quererem ser consideradas, então têm que fazer isso", explica.
Após passar 17 dias em coma, o seu filho mais novo não corre mais risco de morte. Porém, durante muito tempo, a sua vida esteve por um fio. "Os médicos não acreditavam, mas graças a Deus ele superou essa", desabafa aliviada. Ela salienta que o perigo é que, uma vez envolvido, não tem mais volta.
"Tive muito medo de perder esse, por isso clamei a Deus por ajuda. Passo o dia inteiro com ele no José Frota, durmo aqui. Quando ele tiver alta é que vou ver o que vou fazer da vida. Penso em sair do Pirambu, porque eu sei que essa rivalidade não vai acabar nunca. Não tem para onde correr, eles não perdoam. Se saíram no destino de matar aquela pessoa e não conseguiram, infelizmente eles não deixam para lá", constata desesperançosa.
Droga está presente em 90% dos municípios cearenses
Realidade que vem afetando todos os segmentos da sociedade, o uso do crack acarreta em várias consequências, a exemplo do aumento da criminalização, violência e fragilidade da vida familiar. Inicialmente usado pela população em situação de rua e pelas camadas mais pobres da sociedade, a droga tem se difundido por todas as classes sociais e se disseminado rapidamente entre os municípios brasileiros.
No Ceará, o crack está presente em 90,2% dos municípios. É o que aponta mapeamento feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), através do Observatório do Crack. Foram pesquisados 154 dos 184 municípios cearenses, sendo constatada a presença da droga em 139.
A pesquisa classifica o nível de consumo nos municípios em alto, médio e baixo. Dos 139 em que foi constatada a presença da droga, o problema é considerado alto em 33 (21,4%), médio em 69 (44,8%) e baixo em 37 (24%). Entre as áreas mais afetadas pela dinâmica que o consumo da droga apresenta, consta a área da saúde em primeiro lugar, com 63,7% das citações. Seguida da segurança (58,5%), assistência social (44,6%) e, por último, a educação (37,9%).
Estrutura
No que diz respeito à assistência social, o estudo destaca que os problemas mais comuns relacionados ao consumo de crack fazem referência à falta de estrutura familiar, acarretando no abandono da vida familiar e social, dificultando a reinserção desses usuários à rede social. Quando há o rompimento com a família, destaca o estudo, é necessário tratar os integrantes desse núcleo afetivo, pensando sempre em reestruturar o ambiente familiar e comunitário.