SÉRIE PARTO DOS ANJOS
fonte:dn/tn
Agente de saúde, Severina cuida da comunidade, conhece os filhos alheios pelo nome. Atendeu às recomendações médicas durante a gestação. Ao dar à luz o filho morto, prova que a maior dor não é a do parto, mas a da partida
Aquela que passa a vida caminhando de lar em lar, orientando sobre o combate às doenças. Conhece cada criança pelo nome, cada mãe. Ao lado da rezadeira, é a representação da saúde no bairro. É Francisca Severina, a agente de saúde em Quixeramobim. Não deixa que uma criança fique desnutrida, desidratada. Faz-se da casa alheia ao menos uma vez por mês, todos os dias, enquanto vê as crianças crescendo, até ficarem adultas. Faz da atenção à saúde o que no sertão cearense se define numa palavra: acompanhamento. Quando fala, cobra, pede, ordena, é de mãe para mãe. "Olha, mãezinha, é pro seu bem...". Tem dois e sabe a luta. Mas enxergava suas limitações. "Ninguém, nem mesmo uma mãe, sabe a dor de perder um filho". Até que perca.
Todos os dias, Severina deseja nunca ter conhecido essa dor. Sem visitar ninguém, sofre a dor do partir e tenta visitar a si. Caminha até o cemitério para conversar com o filho que não está no berço. "Dá vontade de arrancar e levar comigo". Não deu tempo nem tocar nos seus pequenos dedos. Quando o colocaram a primeira e única vez em seus braços, já sem vida, estava embrulhado em um lençol apenas com a cabeça de fora.
Teriam sido mais gentis, pensa, repousando-o em seu colo como veio ao mundo, o mesmo do qual já se despedia. Contudo, o tempo quem faz é o hospital, e era necessário "retirar o corpo". Não o chamaram pelo nome.
Enquanto olha fixamente para o túmulo, tem vontade de tomá-lo de volta do dia em que lhe arrancaram dos braços e, dessa forma, dos dias. Seria retomar um pouco de si, sepultada numa cova sem nome ou número, porque é emprestada de outra família. No entanto, está acordada, e é verdadeiro o que acontece.
Em quase duas décadas como agente de saúde, Severina fazia o terceiro acompanhamento dela mesma. Depois de Eduardo e Letícia, vinha alguém que mais tarde se chamaria Emanuel.
O que cobra das mães do bairro, Severina toma para si. Fez as oito recomendadas consultas de pré-natal. Cuida de sua saúde como se recomendasse a um paciente. Trabalhou só até o período aconselhado, cuidou de todo o enxoval.
Recebeu as colegas de equipe do Programa Saúde da Família para o chá de fralda. Com um batom vermelho, escreveu o nome do filho na imensa barriga. Completou com um "te amo". Eduardo, o mais velho, estava feliz porque teria um irmão. Disse que seriam os dois para proteger Letícia, de 5 anos. Aírton, o esposo, sonha acordado levando Emanuel a passeios após o expediente no almoxarifado do hospital onde trabalha.
Memórias guardadas em um álbum de fotografia: o sorriso dá sequência aos choros. Cenas de uma tragédia. Severina é outra, inconsolável com o filho morto nos braços, deitados num leito qualquer do hospital. Cenas de uma negligência.
Um dia antes, Severina ouvia os batimentos cardíacos de Emanuel, enquanto pedia à médica, pelo segundo dia seguido, a realização do parto que já passava de 42 semanas, uma gestação considerada de risco por outro médico que a acompanhou durante todo o pré-natal. Como não estaria no hospital, ele deixou guia de encaminhamento."Meu filho queria nascer quando me mandaram ir pra casa pela segunda vez". Tendo passado da hora, Emanuel nasceu morto, 12 horas após não se ouvir mais seus batimentos. Somente o choro da mãe cortou o silêncio da sala que não era a de parto, embora em uma maternidade.
Severina achava que a dor de dar à luz era a maior que uma mulher poderia sentir, até parir um filho que já morreu.
Da pior forma possível, sabe a diferença que faz um dia a mais. Queria voltar no tempo até encontrar alguém para ajudar Emanuel a viver. Ou congelar as horas para ao menos sepultar o filho no seu próprio útero. Estaria aquecido e protegido.
Melquíades Júnior
Repórter
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