Milhares de mulheres na Rússia morrem anualmente em decorrência de violência doméstica, segundo estimativas oficiais. Mas, mesmo após anos de discussões, o abuso doméstico ainda não é reconhecido como crime no país.
Anya tem várias preocupações na cabeça. Vivendo em um quarto com poucos móveis, ela está tentando fazer com que seus dois filhos, de 4 e 7 anos de idade, tirem seu cochilo da tarde.
A história dela é típica. Durante seu casamento de sete anos, ela era regularmente espancada ou sofria agressões verbais. Ela vivia com medo, sem saber onde buscar ajuda.Não é uma das tarefas mais fáceis, e é ainda mais difícil em seu lar temporário - um quarto em um abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica.
Quando decidiu registrar uma reclamação na polícia, há anos, ela ouviu dos policiais que nada poderia ser feito a respeito de seu marido ''já que era a casa dele''.
'Pesadelo silencioso'
''Foi um pesadelo, mas um pesadelo silencioso'', afirmou.
''Por um período, eu não podia deixar minhas crianças sozinhas e não podia ir ao hospital. Então esperei as crianças crescerem para que elas pudessem confirmar na polícia o que estava acontecendo. Foi aí que comecei a fazer gravações, filmei o que estava acontecendo'', relata.
''Mas não adianta. A polícia não quer lidar com isso. Certa vez, uma policial veio até minha casa e disse: 'Por que você não foge? Foi o que eu fiz'. Então até mulheres policiais têm de arcar com isso…"
Anya se divorciou de seu marido há dois anos, mas, incapaz de pagar por sua própria casa em Moscou, foi obrigada a compartilhar o apartamento de família com ele.
A última leva de espancamentos se deu em meados de janeiro. ''Eu voltei com as crianças de uma apresentação de circo. Estava muito cansada, mas ele não me deixava dormir. Eu disse que ele parasse, e foi então que ele começou a me bater.''
O abrigo com 35 dormitórios nos subúrbios de Moscou é a única opção para ela e várias outras mulheres que se encontram em situação semelhante.
Ninguém sabe precisar o número de mulheres russas que precisam recorrer a abrigos como este. Mesmo depois de duas décadas de discussões e debates no país, a violência doméstica não é classificada como um crime e não há estatísticas oficiais sobre incidentes.
Cifras elevadas
Mas, segundo estimativas do Ministério do Interior russo baseadas em estudos realizados em algumas regiões do país, cerca de 600 mil mulheres na Rússia enfrentam abusos físicos e verbais em casa todos os anos.
Destas, um total de 14 mil morrem em decorrência dos ferimentos causados por maridos ou parceiros, o que representa quase que 40 por dia.
Diante de tais cifras, a demanda por abrigos como o de Anya deveria ser muito elevada, mas em Moscou, uma cidade de 12 milhões de habitantes, só há um refúgio deste tipo financiado pelo Estado.
Cada uma das mulheres no abrigo pode passar até dois meses no local, enquanto encontram maneiras de enfrentar a crise pessoal que enfrentam e formas de lidar com complicados procedimentos legais.
''Podemos ajudá-las com a papelada legal, providenciamos assistência psicológica, mas acima de tudo cabe à pessoa decidir uma maneira de dar um passo adiante'', afirma Natalia Pazdnikova, a diretora do abrigo.
''Estamos aqui para ajudar durante uma crise, mas encontramos mulheres que estão perpetuamente em crise e que querem que nós façamos alguma coisa por elas.''
Provas escassas
Mas obter provas de que sofreram abuso pode ser difícil tanto do ponto de vista emocional como do de coleta de documentos - e, como o caso de Anya comprova, a polícia não pode ajudar muito.
As vítimas afirmam que, muito frequentemente, em vez de registrar queixa por agressão, policiais pedem às mulheres que ''pensem bem a respeito'', com argumento de que muitas vezes a queixa acaba sendo retirada alguns dias depois, por pressão dos maridos ou dos parentes.
O investigador de polícia Andrei Levchuk, entretanto, diz que ele e seus colegas seguem todos os procedimentos formais. A área onde ele atua cobre 30 blocos de edifícios no noroeste de Moscou. Violência doméstica, assim como roubo de residências e roubos de carros estão entre as ocorrências mais frequentes.
De acordo com o policial, não tendo testemunhado o incidente, tudo que os policiais podem fazer é advertir o suposto agressor. A advertência pouco faz para impedir futuras agressões. ''Às vezes, a mulher diz 'por favor, assuste-o para que que ele não faça novamente'.''
Números da violência
Abuso doméstico na Rússia
- 600 mil mulheres sofrem abuso doméstico todos os anos
- 14 mil mulheres morrem em decorrência de ferimentos causados por maridos ou parceiros anualmente
Fonte: Estimativas do Ministério do Interior russo
"Bem, não somos espantalhos para assustar alguém assim. O que fazemos é dizer para o marido que ele vai se dar mal se fizer algo assim de novo. Ele concorda, diz entender, mas Deus lá sabe o que acontece quando eles fecham as portas'', comenta.
Ele acredita que o sistema que existia durante a era soviética, que permitia aos tribunais retirar agressores por até duas semanas e obrigá-los a prestar serviços comunitários seria uma forma eficaz de prevenção.
O inspetor admite que, na maioria dos casos, as lesões sofridos pelas vítimas não eram suficientes para justificar a abertura de uma investigação criminal e que o máximo que a polícia pode fazer é aconselhar a vítima a apresentar uma petição pela abertura de uma investigação particular.
Pela lei russa, em investigações particulares cabe à acusadora provar que ela foi vítima de abuso.
Marina Pisklakova, fundadora do movimento Anna, a mais antiga organização não-governamental russa a lidar com abusos domésticos, conta que casos de violência doméstica só passam a ser casos de polícia quando é possível provar que as lesões sofridas são sérias ou graves ou que mortes aconteceram: "Ele se torna um caso criminal quando já é muito tarde para responder à violência doméstica'', afirma Pisklakova.
Mudança de percepção
Lentamente, a percepção por parte do público sobre esse tema está mudando, comenta. ''Há 20 anos, em todo programa de debates em que o tema era levantado, a plateia ou os apresentadores perguntavam: 'O que há de errado com essas mulheres, o que elas fizeram para merecer apanhar?'"
Ela afirma que houve uma mudança de mentalidade: "Agora, cada jornalista com quem eu converso me pergunta: 'O que fazemos para mudar isso?'"
Mas anos de campanhas em defesa de uma lei que reconheceria o abuso doméstico como um crime específico ainda não renderam frutos. Após mais de uma década de discussões, o projeto de lei sobre violência doméstica ainda não foi apresentado no Parlamento.
Marina Pisklakova espera que a Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, comece a discutir o tema neste ano.fonte:BBC Brasil em moscou/jardim das oliveiras blog
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