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domingo, 1 de setembro de 2013

JANGO ERA,ANTES DE TUDO, UM HERÓI.




Patricia Fachin - IHU - Unisinos


Adital - João Goulart deve ser considerado um “herói”, porque em duas ocasiões “livrou o Brasil de uma guerra civil”, diz  Juremir Machado, autor de “Jango - a vida e a morte no exílio”, livro lançado em junho deste ano, no qual pretende desconstruir os mitos em torno do ex-presidente brasileiro. Na semana passada (dia 25) fez 52 anos da renúncia do então presidente Jânio Quadros, razão pela qual João Goulart assumiu a presidência da República após negociações com os militares, num sistema parlamentarista. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Juremir Machado comenta o episódio e assinala que Jango “era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar” e por isso aceitou a conciliação proposta. “Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes”, pondera.
DivulgaçãoLivro retrata João Goulart como um político de convicções e não hesitante, covarde e corrupto como ficou conhecido após a cassaçãoLivro retrata João Goulart como um político de convicções e não hesitante, covarde e corrupto como ficou conhecido após a cassação

Ao optar por assumir a presidência num sistema parlamentarista, que limitava seus poderes, Jango teve o “primeiro estremecimento” com Brizola, que à época era governador do Rio Grande do Sul. “Brizola não foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista”, menciona.

De acordo com o jornalista, Jango ficou conhecido como um presidente hesitante, covarde, incompetente, corrupto, contudo, “era um homem de convicções, de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde”, assinala. E dispara: “Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país”. Confira a entrevista.

A partir da sua reconstrução histórica, quem foi João Goulart? Qual sua contribuição para a história política do Brasil?

João Goulart foi, a meu ver, antes de tudo, um herói. É exatamente essa a palavra. Por que um herói? Porque em duas ocasiões ele livrou o Brasil de uma guerra civil. A primeira vez foi em 1961, quando Jânio Quadros renunciou e os militares decidiram que Jango não poderia assumir. Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes. Ao aceitar a conciliação proposta, que foi a saída parlamentarista, ele evitou um conflito militar que estava preparado, conflito que até se justificaria na medida em que ele teve poderes usurpados. Mas ele teve a sabedoria de conciliar para evitar a guerra civil. A segunda vez foi em 1964.

Nessa ocasião, se ele quisesse, teria resistido ao golpe e, a meu ver, a resistência teria sido inútil. Essa era também a avaliação dele, a resistência iria provocar um banho de sangue e os resistentes teriam finalmente vencido. Então, ao ter a sabedoria de evitar por vaidade, por apego ao poder, esses conflitos, ele se apresentou como um herói. Além disso, Jango foi um presidente generoso, um homem de grande sabedoria, que tentou fazer reformas fundamentais para o Brasil: as reformas de base, em uma época que o Brasil ainda não estava maduro, as reformas agrárias, as reformas bancárias, reformas educacionais. Todas elas eram reformas importantíssimas, altamente necessárias para modernizar o Brasil à época, para tornar o país menos desigual, e para civiliza-lo.

Como ficou a relação de Jango com Leonel Brizola depois que ele aceitou a proposta de governar num sistema parlamentarista?

Brizola e Jango eram pessoas igualmente interessantes e que representavam aquelas situações extraordinárias em que pessoas com posicionamentos diferentes têm igualmente razão. O Brizola era um espírito impetuoso, um sujeito extremamente ousado, que se definia mais pela busca do conflito. Jango era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar. Ambos tinham razão. O Brizola tinha razão em querer que os poderes legítimos do Jango, em 1961, fossem atribuídos a ele, e o Jango tinha razão ao pensar: “Por essa via não vai, melhor conciliar”. Em 1961, a relação teve o primeiro estremecimento, tanto que Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista. Mas esse episódio foi superado. Porém, ao longo do governo Jango, Brizola pressionou pela aceleração das reformas. Muitos acham até que isso contribuiu para a queda de Jango. Então, eles tiveram vários momentos de conflitos, de atritos, de estranhamentos, durante o próprio governo de Jango.

Mas a ruptura entre eles aconteceu com o golpe. Eles tiveram uma reunião em Porto Alegre e, nessa reunião com o General Ladário Teles, nomeado Comandante do Terceiro Exército, o Brizola queria ser nomeado Ministro da Justiça, e queria que se organizasse uma resistência armada, porém Jango não quis. Então, ali eles se estremeceram, e depois ficaram anos e anos no exílio sem qualquer tipo de contato, apesar de serem membros da mesma família. Pouco antes de  Jango morrer, em 1976, eles fizeram as pazes, o que solucionou uma situação que era insustentável, porque no fundo, um gostava do outro. Eles tinham objetivos comuns, tinham o mesmo partido (PTB), tinham uma mesma visão de mundo: a visão do Brizola era um pouco mais exacerbada, mas eles eram do mesmo campo. Eram amigos, cunhados, tinham o mesmo propósito, e se desencontraram pelo caminho, mas felizmente se reencontraram um pouco antes da morte de Jango.


Como avalia esses três anos de governo Jango? Valeu a pena ele ter evitado o golpe?

Acho que valeu a pena. Ele evitou a guerra civil, ele assumiu como presidente do regime parlamentarista, e mais tarde, como era previsto na emenda condicional, se realizou o plebiscito em 6 de janeiro de 1963, e ele recuperou seus plenos poderes, e passou então há tentar aplicar aquilo que achava conveniente para o país. Naquela situação de Guerra Fria, de implantação do socialismo em Cuba, de alta influencia Americana nos países da América Latina, dos Estados Unidos financiando campanhas políticas no Brasil, infiltrando pessoas para ajudar a preparar um golpe, criava uma situação muito difícil.  Jango fez o que deveria ser feito. A conjuntura não era favorável a ele, e o golpe começou a ser preparado desde 1962 e, de certa maneira, desde 1961, quando os militares não conseguiram golpeá-los em 1961. Eles perceberam que deviam se organizar minuciosamente para, na primeira oportunidade, dar um golpe que realmente se efetivasse. Jango não caiu por ter feito coisas erradas. Caiu pelos acertos dele, porque ele queria mudar, modernizar, melhorar o país. O grande perigo que o Brasil tinha com  Jango, era de ficar muito melhor prematuramente, tirando parte dos incríveis privilégios que a classe dominante absolutamente minoritária tinha na época.

Quais foram às razões que levaram à queda de Jango?

 Jango caiu principalmente por causa da reforma agrária, quando propôs a reforma agrária depois do comício de 13 de março, na Central Brasil. A reforma agrária, até então, era feita com desapropriação de terras em dinheiro.  Jango, para poder fazer uma reforma agrária consequente, propôs a alteração da Constituição, que permitiria pagar com os papéis do governo, ou seja, não pagar a vista. E isso era terrível para os fazendeiros que não queriam perder suas terras ou então vendê-las caro, e com pagamento a vista.

Jango foi visto além de tudo como um traidor, porque ele era um fazendeiro. A reforma agrária era tão importante num país com alta concentração de terra, que o próprio Getúlio Vargas, que fez toda legislação trabalhista, não atacou a questão da reforma agrária e nem levou a legislação trabalhista para o campo. Foi no governo Jango que, finalmente, se teve a coragem e determinação de propor de fato a reforma agrária. Quando ela caiu na mesa do Congresso, e quando se viu que era para acontecer, aí veio o golpe de 1964.

É nesse sentido que o senhor diz que Jango foi um reformista no tempo errado?

Sim. Ele queria fazer várias reformas: educacional, tributária, bancária. A reforma educacional começava por alterar o que era chamado de catedravitalisia, e era importante porque o Brasil tinha um índice de alfabetismo estonteante; de 70 bilhões de habitantes, apenas 70 mil pessoas estavam na universidade, e no máximo 2.400 pessoas em pós-graduação. Então, era um país de analfabetos, um país de pouquíssimas pessoas que podiam chegar à universidade, e precisava mudar esse cenário. Precisava criar universidades, alfabetizar as pessoas, colocar mais gente para estudar. E ele estava cercado de grandes conselheiros nesse sentido: Paulo Freire, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Celso Furtado. As reformas dele iam a todos os sentidos, até mesmo de uma reforma imobiliária, porque havia muitos apartamentos vazios nas grandes cidades, os quais não eram alugados. E ele queria fazer um tipo de reforma que obrigasse a colocar esses imóveis à disposição das pessoas, porque muitas não tinham onde morar.

Como foi construído o imaginário favorável ao golpe de 64?

Aí entra a imprensa da época. Os Estados Unidos participaram de tudo desde 1962! Eles financiaram campanhas de políticos de oposição ao Jango, depositaram muito dinheiro em propagandas, e ganharam a adesão da mídia. A imprensa brasileira da época era totalmente golpista. Os jornais, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa ajudaram a depor o Jango, eles empurraram  Jango para o exílio, e são corresponsáveis com o que ocorreu com ele. Essa é a verdade. Uma mídia golpista, conservadora, reacionária e que ajudou a construir uma ideia de ameaça comunista, que seria acachapante, que estaria ali na porta do país, e que era preciso impedir derrubando o Jango.

A ameaça comunista não existia?

A ameaça comunista existia, mas era muito tênue. Primeiro, Jango não era comunista, e não queria implantar um regime comunista no país. Havia sim pequenos grupos que gostariam de implantar o comunismo no Brasil. Mas eles não tinham força nem no Congresso nem na presidência da República, e não tinham como fazer isso. Alguns gostariam, mas eram só alguns grupos obviamente contestados pelo governo. Não tinha operando nenhum grupo guerrilheiro na época. Então, não tinha nenhuma guerrilha montada atuando no momento do golpe. As guerrilhas só começaram depois que a repressão se alastrou; ela surgiu como reação.

Ele também era acusado de ser comunista.

Ele era chamado de comunista todo tempo, porém não tinha nada de comunista. Ele era um liberal, fazendeiro, católico. Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país. Eles poderiam continuar ricos, mas o Brasil poderia ser melhor, ou seja, não valia a pena ser rico daquela maneira. Então, essa sensibilidade social, própria do trabalhismo, foi uma sensibilidade muito forte que caracterizou esses personagens: Getúlio, Jango, Brizola, Fernando Ferrari, Alberto Pasqualini. Todos esses personagens disseram: “Nem deixar o país como ele está nem aderir a uma perspectiva comunista”, mas adotar uma situação intermediaria, ou seja, a adoção de uma política de melhorias, de reformas, uma política inspiradas nas próprias encíclicas papais do século 19, no desenvolvimento social da social democracia Inglesa.

O senhor apresenta o livro como uma obra de reconstrução e desconstrução para reconstruir o passado e desconstruir os mitos. Que aspectos da historiografia de Jango foram construídos?

A primeira coisa é reconstruir a imagem de Jango. Ele tem sido apresentado por muitos historiadores e adversários como político hesitante, covarde, incompetente, corrupto, e a pesquisa nos permite mostrar que não foi nada disso. Ele era um homem de convicções, um homem de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde. Mas ele não era evidentemente um sujeito de ir ao conflito simplesmente por apego ao poder. Então, a primeira coisa foi mostrar quem foi, de fato, o Jango, contrariando essa construção de seus opositores, de que ele seria um homem feito só de aspectos negativos. O segundo aspecto é mostrar que suas reformas eram consequentes e que podiam ser aplicadas trazendo benefícios para o país. E diante da participação maciça dos Estados Unidos no golpe, ele não tinha o que fazer, e só lhe restava se afastar; e foi o que aconteceu.

O terceiro aspecto diz respeito ao enfoque da morte dele, a construção e desconstrução das suspeitas, e como isso se constituiu. É uma tentativa de mostrar, a partir dos dados, o que se pode realmente concluir sobre a morte dele.

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