fonte:DR
Decifrar a terra é ofício que se aprende no corpo a corpo com o mundo. Quando o profeta diz que o inverno vem, o sertanejo volta a sonhar. E os sonhos, alicerçados na fé, passeiam por terreiros e altares para dar ao sertão duas novas possibilidades: de ter e pertencer
O homem do campo aprendeu a ler a terra no corpo a corpo com o mundo. Vem de longe a mania de adivinhar o futuro do tempo para saber se a chuva cai. As experiências são pessoais, aprendidas voluntariamente na lida diária, a vista colada nos mais discretos sinais da natureza logo que descamba dezembro para entrever se o inverno vem. Ao profeta (reconhecido ou não), as respostas cortam céu e terra para trazer boa nova ao sertão. Vêm na floração do mandacaru, na casinha do joão-de-barro, no relâmpago a clarear o céu. Passeiam por terreiros e altares porque, para quem vive do que nasce na terra, a pior coisa que tem no mundo é perder a fé.
“A natureza é a melhor professora que pode ter. Não existe outra”, decreta Joaquim Umbelíneo, 78, com o dedo indicador em riste. Ele nunca frequentou escola porque a forma como nasceu sentenciou a sina de ser homem da terra. Era uma quinta-feira de março, por volta das quatro da manhã, quando sua mãe, Quitéria Florinda de Araújo, começou a sentir que estava na hora. O menino nasceu diferente dos outros oito que ela teve. A cabeça, que deveria ter chegado ao mundo primeiro, foi a última parte a deixar o corpo da mãe. “Nasci de pé e o que foi pra conduzir eu que conduzi. Minha mãe ficou livre. Ela não sentiu dor por mim”, ele diz. Talvez por isso sinta seu próprio corpo como extensão da terra sertaneja, o trabalho pesado de uma vida toda sendo exibido com orgulho. “Rodei minha vida lutando. Os farelim que eu ganhei foi trabalhando com cabo de foice e machado. Nunca herdei nada de ninguém”.
Joaquim tem inteligência fechada para as letras e aberta para decifrar os mistérios da terra. Sem saber ao certo como aprendeu as experiências para entrever a chuva, ele diz que o conhecimento sempre esteve ali, na observação do mundo. “Não existe outra missão melhor pra quem repara isso”, orgulha-se. Suas experiências vêm da terra: se a formiga da roça fizer seu caminho cheio de voltas e estreito demais, é porque o ano é seco; mas, se o corte do pau de árvore, no mês de outubro, fizer a madeira chorar, pode levantar as mãos aos céus: é sinal de boa chuva.
Joaquim viu as águas encherem e secarem muitas vezes na vida. Na incerteza do campo, criou seus filhos de pés no chão e calção, vivendo do jeito que dava certo. Viajou o sertão em costa de animal, trabalhando para patrão e governo, mas ainda não conseguiu realizar o maior sonho: o de ter uma propriedade para criar ovelha. Agora, aposentado, mudou-se da zona rural para a zona urbana de Tamboril. Mas o homem que nasceu para a terra não se desvencilha dos mistérios da chuva. Não se considera profeta porque não é reconhecido, mas profetiza: “Vamos ter inverno neste ano, só que tem um detalhe: vai aparecer a chuva e o pessoal não vai trabalhar porque fica naquele jogo de que vai ser abaixo da média. Vão ficar esperando. Por quem? Só pode esperar por Deus!”.
Antônio Tavares da Silva, o reconhecido profeta Antônio Lima, caminha a passos ligeiros, no alto dos seus 75 anos. A busca ansiosa é por sinais que provem o que, no fundo, ele quer provar a si mesmo: “Olha! O juazeiro está florando, a aroeira também”. É mês de novembro do terceiro ano de chuvas escassas no Semiárido e, mesmo que a natureza diga o contrário, a busca é por boas notícias. Não demora muito e ele encontra um bom cupinzeiro confortavelmente instalado num frondoso cajueiro. Para, avalia, tira a casca, analisa os pequenos seres que movem incessantemente. “Veja! Tem de todo tamanho e muita asa! Só cria asa se for chover!”.
Enquanto aponta os sinais no distrito de Custódio, na terra dos profetas da chuva, Quixadá, Antônio Lima explica: ele só enxerga o que a natureza avisa. Aprendeu a decifrar os mistérios do sertão de tanto andar pelo mato no mocotó da mãe com os dez irmãos. A esperança na previsão tinha uma razão: comida farta na mesa só tinha quando Deus botava chuva. “Onde ela entrava, nós entrava. Eu tinha oito pra dez anos. Olhava tudo: gia, passarinho; um ficava alegre, outro cantava”, conta. Antônio Lima resiste junto à tradição de prognosticar as chuvas. O dom é passado de geração em geração e na luta diária de observar os signos da terra. Além da natureza, os profetas têm como base sonhos, rituais religiosos, crenças indígenas. Enraizada nos confins do Nordeste, a prática orgulha homens que incorporaram para si a missão de prever e dizer notícia de chuva no sertão.
Beatriz Jucá e Maristela Crispim
Repórter/Editora
Repórter/Editora
Nenhum comentário:
Postar um comentário