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sábado, 2 de fevereiro de 2013

AS TURMAS DESTROÇADAS DA AGRONOMIA.



Curso mais afetado da Universidade Federal de Santa Maria foi o de Agronomia, com 26 vítimas

As turmas destroçadas da Agronomia Arquivo Pessoal/Arquivo Pessoal
Nove estudantes da Família 89 que participaram de uma saída de campo estão mortosFoto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Matheus Librelotto, 19 anos, passou a tarde de sábado contabilizando, pesando e medindo grãos de trigo na sala 5325 do Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O prédio estava quase deserto. De vez em quando, o professor Thomas Martin vinha da sala ao lado para conferir o andamento do trabalho e conversar com o estagiário, aluno do terceiro semestre de Agronomia.

Librelotto respondia por dois projetos do grupo de pesquisa coordenado por Martin. Realizava cultivos de soja e de trigo inoculados com diferentes tipos de bactérias. Depois, analisava cada planta, cada grão, para saber qual delas se desenvolvia melhor. Martin acompanhava o trabalho de perto, porque Librelotto era uma grande aposta: via no jovem um cientista de futuro.


Às 18h, foi a vez de Librelotto procurar o professor. Disse que estava indo para casa mais cedo, porque programara festejar com os colegas na boate Kiss. Na segunda-feira, explicou, retomaria as medições. No lado de fora do prédio, o professor viu o jovem se afastar pela última vez, a caminho do ponto de ônibus.

Nos últimos dias, com a universidade paralisada pelo luto, as plantas semeadas por Librelotto vicejavam sem dono na área de cultivo do campus. Sobre a mesa da sala 5325, repousava a folha quadriculada em que o estudante registrou suas últimas medições, incompletas. Ao redor, os ramos de trigo que ele ainda teria de analisar.

– Alguém vai tocar o trabalho do Matheus adiante. As plantas e as medições não serão abandonadas. É uma questão de respeito pelo que ele começou – promete o professor. 

A retomada: Cadeiras vazias
Às 8h30min desta segunda-feira, quando o professor Ricardo Dalmolin der início à aula de Classificação de Solos, a primeira da manhã, a principal presença na sala serão ausências. O ambiente estará repleto do vazio deixado por Librelotto e por mais sete colegas vitimados na madrugada de domingo no incêndio da Kiss. Um em cada sete alunos da turma de terceiro semestre está morto.

Na tarde seguinte, o professor Fabrício Pedron encontrará ainda mais espaços em branco em uma sala do prédio 44, onde leciona Fundamentos da Ciência do Solo para estudantes de segundo semestre. A disciplina teve 14 baixas: 12 estudantes e dois monitores.

As turmas de segundo e de terceiro semestre são as mais destroçadas no curso de Agronomia da UFSM, por sua vez o epicentro de uma tragédia que abalou a universidade, a cidade, o país, o mundo. Das 236 vítimas do incêndio, 26 eram estudantes do curso.

– Quase todos os alunos da minha disciplina estavam dentro da boate. Tiveram de pisar nos corpos dos colegas para sair. Não tem como dar aula normal para eles. Ainda precisamos descobrir como trabalhar com esses alunos. Acho que muitos nem vão vir – prevê Pedron. 

A turma: Família 89
Dez dias antes da tragédia, Pedron participou da última explosão de alegria da turma de 2º semestre que chamava a si mesma de "Família 89" – "família" por serem unidos, 89 porque havia 88 turmas anteriores no curso. Como parte da sua disciplina, o professor embarcou os estudantes em dois ônibus e percorreu o sul do Estado, parando em barrancos à beira da estrada para mostrar os diferentes tipos de solo do Rio Grande do Sul. Foram dois dias de descontração em São Gabiel, São Sepé, Rosário, Quaraí, Alegrete. No caminho, Pedro Salla, 17 anos, arranjou um pandeiro e acompanhou um colega que tocava bumbo. A turma entoava em coro música sertaneja e pagode. A certa altura, o bumbo virou mesa para o truco de Salla e Tiago Segabinazzi, 19 anos.

O pernoite ocorreu em Santana do Livramento. Um dos meninos, João Paulo Pozzobon, do quarto semestre, não parava de falar ao telefone com a namorada. Na hora de sair para jantar, ele disse que não ia, que preferia ficar no hotel. O comportamento do colega apaixonado divertiu a turma: 

– Pozzobon, a tua namorada por acaso é delegada? – provocou Daniela Ahmad, 19 anos.

Depois do jantar, a noite da Família 89 terminou na praça que divide Brasil e Uruguai.   Agora, nove estudantes que participaram da viagem estão mortos. Entre eles, Salla, Segabinazzi, Pozzobon e Daniela.

A retomada: Um professor chora
Na tarde de terça-feira, o professor Ricardo Dalmolin estava sentado em sua sala, com uma tese de doutorado aberta sobre a mesa. No dia seguinte, teria de viajar a Piracicaba (SP) como integrante da banca que avaliaria o autor do trabalho. As horas passavam, mas Dalmolin não conseguia ler. De vez em quando, chorava. Não parava de pensar nos seus oito alunos mortos.

– Fico lembrando da carinha deles. Não me saem da cabeça nunca.

Na sala, Dalmolin conservava em uma pilha as provas recém-corrigidas da turma de terceiro semestre. A nota mais alta era de Paula Gatto, 19 anos: 9,06. Lucas Foggiato, 21 anos, obteve 8,19. Eram os dois melhores alunos, agora mortos. O professor não tinha ideia do que fazer com aquelas folhas rabiscadas. Mas tomou uma decisão.

– Não vou fazer a segunda prova. Não vou fazer avaliação nenhuma neste semestre. Já decidi isso. A princípio, todos os alunos estão aprovados. Não faz sentido avaliar ninguém. Nesse momento, muita coisa deixou de fazer sentido.

Dalmolin interrompeu a leitura infrutífera da tese de doutorado, selecionou os endereços de e-mail de todos os alunos e enviou-lhes uma mensagem:

"Sintam-se abraçados neste momento. É o que eu queria fazer pessoalmente. (...) Na próxima segunda-feira nos reencontraremos. (...) Difícil, mas precisamos continuar, com coragem e aos poucos recuperando o sentido e a alegria, em memória de nossos colegas. Com carinho, Prof. Dalmolin."

 
Na quinta-feira, dia 24 de janeiro, amigos reuniram-se em uma pizzaria.
Foto: Arquivo Pessoal
A turma: Uma quinta-feira
Com aulas pela manhã e à tarde, a quinta-feira era um dia cheio para os alunos do segundo semestre. Leonardo Vendruscolo, 18 anos, fazia questão de sair cedo de casa, para ser o primeiro a bater à porta do colega Luiz Fernando Donati, 18 anos, morador do Centro e dono do carro no qual seguia para o campus, quase todos os dias, um quarteto formado também por Guilherme Miquelotti, 18 anos, e Tiago Segabinazzi.

No dia 24, última quinta em que a Família 89 estava completa, Vendruscolo conseguiu ser o primeiro a chegar à casa do amigo. A primazia lhe garantia o direito de sentar no banco da frente e comandar a playlist, composta por sucessos sertanejos. Os quatro amigos partiram às 7h20min. No caminho para o campus, surpreenderam-se com som baixo. 

– Percebemos que, no começo do semestre, o volume ficava no máximo e cantávamos até chegar à faculdade. Agora, com as provas e trabalhos, precisávamos nos concentrar mais e íamos sem cantar – conta Miquelotti.

Miquelotti é o único que ainda vive dos quatro que estavam no carro. 

– Sei que é algo pequeno no meio disso tudo, mas não sei como vou ir para a faculdade a partir de agora – espanta-se.

Entre a aula da manhã e da tarde, os colegas costumavam ir até o Shopping Peruzzo para um almoço conjunto. Isadora Costaguta, 20 anos, levava a amiga Juliana Lentz, 18 anos, vítima da Kiss. Os rapazes iam no automóvel de Luiz Fernando.

– Os piás colocavam os braços para fora do carro e faziam de conta que estavam remando – recorda Isadora.

Naquela quinta-feira, o convívio se estendeu até a noite. Era aniversário de Bruno Grethe (internado em razão dos ferimentos no incêndio), e os rapazes se reuniram para comemorar em uma pizzaria.

No encontro, Pedro Salla deu uma demonstração de que não era apenas o mais engraçado da turma. Também tinha maturidade. Vendruscolo queria fazer uma foto dos amigos. Para que todos fossem retratados, Salla teve a ideia de pedir que o garçom fizesse o registro. O homem colocou a bandeja na mesa ao lado, mas a pizza tombou no chão. Preocupado, Salla foi atrás dos responsáveis pelo estabelecimento:

– Não reprimam o garçom. A culpa foi toda minha – anunciou.

Dos 12 presentes na foto da pizzaria, quatro estão mortos.

  
Jaleco branco manchado de terra de Melissa Correa permanece com destino incerto
Foto: Adriana Franciosi/Grupo RBS
A retomada: Duas amigas
Na terça-feira passada, a formanda Elci Gubiani, 26 anos, entrou no prédio do curso de Agronomia e dirigiu-se ao laboratório de química e fertilidade do solo. Ao entrar na sala, desandou a chorar. Não aguentou permanecer no mesmo ambiente em que convivia todos os dias com a bolsista Melissa Correa, aluna do terceiro semestre morta na Kiss. Elci teve de virar as costas e voltar para casa.

Uma semana antes, quando as duas amigas se encontraram no local de trabalho, Melissa disparara:

– Tua orelha não ficou vermelha?

– Por quê? – questionou Elci. 

– Porque passei o fim de semana falando bem de ti. 

A amizade tinha mais de um ano, desde a entrada de Melissa no laboratório. Em um dia de novembro, ela pulou sobre a recém-chegada Elci e deu-lhe um abraço.

– Parabéns!

Foi ali, por Melissa, que a formanda soube que havia se saído bem nos testes de admissão para o mestrado. As duas planejavam trabalhar juntas durante a pós-graduação da mais velha, com Melissa na função de bolsista. Apesar da dor, Elci está convencida de que conseguirá trabalhar no laboratório, onde o jaleco branco manchado de terra de Melissa permanece com destino incerto.

– O laboratório não vai ser um ambiente com sentimentos ruins, porque está associado a lembranças boas. Ele vai me lembrar da Melissa sempre sorrindo, me abraçando, fazendo o que gostava – afirma.

 
Das seis moças nesta foto, cinco morreram. O autor da foto, João Barcellos, também
Foto: João Barcellos/Reprodução Site Zoom
A turma: A sobrevivente
Melissa era um dos nove alunos do terceiro semestre de Agronomia que estavam na Kiss na madrugada de domingo. Oito morreram. A única sobrevivente foi Jéssica Andrade, 20 anos.

– Eu sai da boate para fumar. Quando cheguei à calçada e peguei o cigarro, aconteceu tudo – conta Jéssica.

Jéssica era uma das organizadoras da Agrofarma, festa de alunos da Agronomia e de Farmácia realizada no dia 12 janeiro, na Kiss. Uma das fotos registradas naquela noite exibe, no interior da boate, lado a lado, suas colegas Melissa, Paula Gatto e Andrise Nicoletti, 20 anos. Também posaram para o clique Fernanda Malheiros, 18 anos, do 1º semestre de Agronomia, e Júlia Saul, 21 anos, estudante de Medicina da Unisc.

Na madrugada do domingo passado, as cinco fotografadas se reencontraram na Kiss. Todas estão mortas. O autor da foto, João Barcellos, também. 

Entre as vítimas do terceiro semestre estava também Lucas Foggiato, 21 anos. Ele era inseparável da colega Virgínia Pillon, 23 anos. Sentavam lado a lado na sala de aula, comiam juntos no Restaurante Universitário, faziam os trabalhos acadêmicos em parceria. Virgínia guarda da madrugada de domingo uma última lembrança do amigo. Acordada às 5h por causa da tragédia, sua primeira atitude foi telefonar para o celular de Lucas. Discou três vezes, mas o telefone só chamou. Às 5h46min, três horas depois do incêndio, o telefone de Virgínia tocou. O nome de Lucas apareceu no visor.

– Eu disse: "Lucas!" E nada. Ninguém respondeu. Ouvi barulho de coisas desmoronando e de gente gritando. Falei: "O Lucas morreu". 

A retomada: apoio psicológico
Nas cadeiras frias do auditório do Centro de Ciências Rurais, professores de cabeças baixas e olhos inchados reuniram-se na manhã de quinta-feira para buscar ajuda na psicóloga Camila Schmitt Pires. O centro congrega cinco cursos de graduação, com um total de 65 mortos.

O encontro foi marcado por causa dos temores que rondam o reinício das aulas, na segunda-feira.

– Não estamos preparados para isso. Quando eu entro em uma sala vazia, tenho uma sensação ruim. Parece que vejo os alunos mortos ali – diz o coordenador da Agronomia, Toshio Nishijima.

Thomas Martin preocupa-se com os pequenos detalhes que podem colocar tudo a perder:

– De repente tu vais fazer a chamada e, sem perceber, diz o nome de um aluno que morreu. Estraga a aula observa o professor.

Durante o encontro, um espaço foi aberto para o corpo docente abrir o coração. Eles confessaram: não somos a fortaleza que os alunos esperam que sejamos. Camila, a psicóloga, deu seu recado:

– Não existe regra para enfrentar um momento como este. Só recomendo uma coisa: sejam sensíveis e acolham os alunos, sem cobrar presença ou conteúdo. E não façam nada que não queria fazer.

A turma: Semeadura na Casa do Estudante
A maioria dos colegas do segundo semestre estava na parte do fundo da Kiss. Emilio Bernich, 18 anos, atravessou a boate com os colegas Fábio Cervinski e Joel Berwanger.

Quando Bernich e Cervinski voltavam para junto dos amigos, notaram que Berwanger continuava no sanitário. Bernich concluiu que o colega ficara para trás porque estava passando mal.

– Vou voltar – disse.

Encontrou o amigo saindo do banheiro no momento em que começou a gritaria. Próximos da porta, conseguiram sair, mas tiveram de ser internados. Mais distante da saída, Cervinski não escapou.

Os três amigos moravam na Casa do Estudante Universitário, chamada de CEU. Criado no meio rural, Cervinski tinha o hábito de decorar o quarto com os cultivos do campo. Tinha um pé de batata em um vaso de flor e outro de bergamota em um pote, enfeitando o parapeito da janela.

– Por brincadeira, eu e o Joel (Berwanger) resolvemos plantar um pé de milho em uma garrafa pet e deixar no quarto dele. Deve estar lá agora, crescendo – diz Bernich. 

 
Na Casa do Estudante, do Centro, o luto está estampado na expressão dos alunos
Foto: Adriana Franciosi/Agência RBS
A retomada: Um compromisso
O retorno às aulas e a continuidade do curso assombram os estudantes da Agronomia atingidos pela tragédia. Eles temem a volta a um espaço feito de lembranças estilhaçadas. Na Casa do Estudante, do Centro, onde reside, Jonathas Wouthers, 18 anos, aponta para o computador em cima da mesa e diz:

– Vou abrir meu Facebook e a cara deles vai aparecer ali, como se estivessem offline. Vai demorar pra cair a ficha de que eles jamais voltarão a ficar online.

A colega Carina Marchezan, 19 anos, tem dificuldade para imaginar um retorno à sala de aula.

– Só penso que vou sentar na classe, olhar para o lado e não vou encontrar a pessoa. Esse vai ser o maior desespero, meu e de todo mundo.

Apesar da dor, muitos estão determinados a seguir até o fim. Acreditam que devem isso aos que morreram.

– Agora é fim de semestre, período de provas. Não sei com que cabeça vamos estudar. Mas temos de levar a turma adiante, não só por nós, mas pelos dez colegas que tinham o mesmo sonho – assegura Mateus Lunkes, 24 anos, do segundo semestre.   

Sua colega Isadora Costaguta sente-se imbuída da mesma missão:

– Perdi meus melhores amigos. Pensei em mudar de faculdade, mas como posso abandonar os colegas? Temos de nos formar e dedicar o diploma a quem perdemos. Vamos ficar cada vez mais juntos. Não podemos abandonar uma turma que a gente chamava de família.

Apesar de tudo, a Família 89 não morreu.

itamar.melo@zerohora.com

** vanessa.kannenberg@zerohora.com.br
fonte:ZERO HORA/jardim das oliveiras blog

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